Uma exposição das narrativas das religiões de mistério
Ronald Nash
Traduzido e resumido por: Elvis Brassaroto Aleixo
Durante a primeira metade do século XX, vários teólogos liberais e professores afirmaram que o Novo Testamento foi mero produto derivado das religiões de mistério pagãs. Este é um assunto importante, especialmente para os seminaristas cristãos que, freqüentemente, enfrentam dificuldades em reunir respostas para esta pergunta. Esperamos ajudar com a matéria que segue.
O QUE FORAM AS RELIGIÕES DE MISTÉRIO?
Diferente do judaísmo e do cristianismo, as religiões de mistério foram as mais influentes nos séculos que precederam o advento de Cristo. A razão de esses grupos ficarem conhecidos como “religiões de mistério” encontra resposta em suas cerimônias secretas, somente conhecidas por aqueles que se iniciavam em tais religiões.
Esses cultos não representavam, obviamente, as únicas manifestações do espírito religioso no Império Romano oriental. As pessoas daquela época também podiam optar por cultos públicos que não requeriam qualquer cerimônia de iniciação que envolvesse crenças e práticas secretas. A religião olímpica grega e sua contraparte romana são exemplos desse tipo de culto menos místico.
Cada região mediterrânea produziu sua própria religião de mistério. Fora da Grécia, surgiram os cultos (que se desenvolveram posteriormente) tributados a Demeter e Dionísio, assim como a Orfeu. A Ásia Menor concebeu o culto a Cibele, a “Grande Mãe”, e ao seu amado, um pastor chamado Átis. O culto às deusas Ísis e Osíris originou-se no Egito, enquanto a Síria e a Palestina viram a elevação do culto a Adonis. Finalmente, a Pérsia (atual Irã) foi o principal local para o culto de Mitra, que, devido ao seu uso habitual da imagem de guerra, proporcionou uma atração especial aos soldados romanos. As religiões de mistério gregas mais antigas foram religiões estatais, na medida em que atingiram o estado de um culto público ou civil e serviram a uma função nacional ou pública. As religiões de mistério posteriores, não-gregas, eram pessoais, privadas e individualistas.
CARACTERÍSTICAS BÁSICAS
Apesar da tendência eclética assumida após o ano 300 d.C., cada uma das religiões de mistério estava separada e era distinta das demais durante o século que viu o nascimento da Igreja Cristã. Todas elas assumiram formas diferentes em contextos culturais distintos e sofreram mudanças significativas, especialmente depois do século 1o da Era cristã. Não obstante, é possível apontar cinco características comuns entre elas:
- O cerne de cada religião era o emprego de um ciclo anual de vegetação, no qual a vida era renovada a cada primavera e terminava a cada outono. Os seguidores dos cultos de mistério imprimiram significações simbólicas complexas nos processos naturais de crescimento, morte, decadência e renascimento.
- Faziam uso de cerimônias secretas, freqüentemente relacionadas a um rito de iniciação. Todas elas compartilhavam um “segredo” ao iniciado, que consistia basicamente em informações sobre a vida do deus ou deusa cultuado e como os humanos poderiam alcançar a unidade com aquela deidade. Esse “conhecimento” era sempre um conhecimento secreto, inacessível a qualquer pessoa fora do círculo do grupo.
- Centravam o culto ao redor de um mito, no qual a deidade tinha, como característica principal, o retorno da morte à vida ou o triunfo sobre os inimigos do grupo. Era implícito nos mitos o tema da redenção, mas sob o aspecto terrestre e temporal. O significado secreto do culto e de seu mito era expresso por meio de uma “tragédia sacramental”, o que aguçava os sentimentos e as emoções do iniciados. O êxtase religioso os levava a pensar que estavam experimentando o começo de uma nova vida.
- Atribuíram pequena ou nenhuma atenção às doutrinas e à reivindicação de possuírem uma crença correta e verdadeira. Estavam, principalmente, preocupadas com a vida emocional de seus seguidores. Os cultos aconteciam de muitas maneiras, sempre com o intuito de afetar as emoções e as imaginações dos iniciados: procissões, jejuns, dramaturgias, atos de purificação, luzes resplandecentes e liturgias esotéricas. A ausência de qualquer ênfase doutrinária marca uma diferença importante entre tais religiões e o cristianismo. A fé cristã era (e continua sendo) exclusivista, no sentido em que reconhece apenas um caminho legítimo para Deus e a salvação: Jesus Cristo. Por outro lado, as religiões de mistério eram ecumênicas e nada impedia o devoto de um culto de seguir outros mistérios.
RECONSTRUINDO AS RELIGIÕES DE MISTÉRIO
Antes de 100 d.C., as religiões de mistério ainda estavam limitadas, em grande parte, a localidades específicas e constituíam um fenômeno relativamente moderno. Depois do século 1o, começaram a atingir uma influência popular que foi difundida, gradualmente, no período do Império Romano. Além disso, sofreram mudanças relevantes na medida em que algumas religiões absorviam elementos das outras. Como esse ecletismo, cresceu agressivamente, emergiram novas e estranhas combinações de práticas e rituais. As religiões reduziram as características mais censuráveis de suas práticas antigas e, com isso, começaram a atrair maior número de seguidores.
As fontes utilizadas por muitos escritores que se lançam no desafio para reconstruir as religiões de mistério são tardias, datadas depois do ano 300 d.C., por isso suas informações são frutos de pelo menos duzentos anos após a produção do último livro escrito e que integrou o cânon do Novo Testamento — o evangelho de João. Logo, a pergunta crucial não deve tratar acerca de uma possível influência das religiões de mistério nos segmentos cristãos depois do ano 300 d.C., mas que efeito elas tiveram no século 1o, momento em que o cânon estava sendo escrito.
O CULTO DE ÍSIS E OSÍRIS (DIVINDADES EGÍPCIAS)
O culto à deusa Ísis se originou no Egito e passou por duas fases principais. Em sua versão egípcia mais antiga, quando não era uma religião de mistério, Ísis foi considerada a deusa do céu, da terra, do mar e do mundo subterrâneo invisível. Nessa fase remota, Ísis teve um marido chamado Osíris. O culto de Ísis só se tornou uma religião de mistério depois que Ptolomeu I introduziu mudanças importantes, em meados de 300 a.C. Na fase posterior, um novo deus, chamado Serápis, tornou-se seu novo cônjuge. Ptolomeu I introduziu mudanças a fim de sintetizar as crenças egípcias e gregas em seu reino, acelerando a helenização do Egito.
Do Egito, o culto à deusa Ísis conquistou seu espaço, gradativamente, em Roma. No princípio, Roma repeliu o culto, mas a religião acabou entrando na cidade durante o reinado de Calígula (37-41 d.C.). Sua influência se expandiu pouco a pouco durante os dois séculos posteriores e, em alguns locais, a religião se tornou a principal rival do cristianismo. O sucesso do culto de Ísis no Império Romano é geralmente justificado por seus impressionantes rituais e pela esperança de imortalidade oferecida a seus seguidores.
Seu mito fundamental remete a Osíris, e nasceu durante o primeiro estágio, quando a religião não era ainda uma religião de mistério. De acordo com a versão mais comum do mito, Osíris foi assassinado por seu irmão, que afundou seu caixão no rio Nilo. Ísis descobriu o corpo e o devolveu ao Egito, mas seu cunhado conseguiu, uma vez mais, chegar até ele e o desmembrou em quatorze pedaços, que foram espalhados amplamente. Após uma longa procura, Ísis recuperou cada parte do corpo. É nesse ponto que as adições empregadas para descrever o que sucedeu são cruciais. Às vezes, acrescenta-se que Osíris voltou à vida. Mas alguns escritores vão além e recorrem a uma suposta “ressurreição”. Um teólogo liberal ilustra a parcialidade que alguns escritores têm quando descrevem o mito pagão com roupagens cristãs: “O corpo morto de Osíris flutuou no rio e ele voltou à vida por intermédio de seu batismo realizado nas águas do Nilo”.1
Essa invenção, fabricada a partir do mito original, sugestiona três analogias enganosas entre Osíris e Cristo: (1) Um deus salvador morre e (2) então experimenta uma ressurreição acompanhada por (3) um batismo em água. As comparações são exageradas porque nem toda versão do mito de Osíris narra seu retorno à vida. Em algumas, ele simplesmente se torna o rei morto do mundo invisível. Igualmente, é forçado a tentar achar um batismo análogo ao batismo cristão no mito egípcio.2 O destino do caixão de Osíris no Nilo pode ser tão relevante para o batismo como o é a submersão de Atlântida, por exemplo.
Também é notável que, durante a fase de mistério dessa religião, a deidade masculina foi substituída, ficando de lado o Osíris morto e entronizando Serápis, que era retratado como o deus do sol, que nada tinha a ver com o antigo marido da deusa. Obviamente, então, nem mesmo ele poderia ser um deus ressurrecto. Portanto, a versão egípcia da religião de mistério posterior a Ptlomeu I, que estava em circulação em aproximadamente 300 a.C., e que adentrou os primeiros séculos da Era cristã, em nada se assemelhava à morte de um deus salvador e ressurrecto, como Jesus Cristo.
O CULTO DE CIBELE E ÁTIS (DIVINDADES FRÍGIAS)
Cibele, também conhecida como a “Grande Mãe”, foi adorada por muito tempo no mundo grego. Ela surgiu, indubitavelmente, como deusa da natureza e da fertilidade. Sua adoração inicial incluía cerimônias orgíacas nas quais frenéticos adoradores masculinos se entregavam à castração, a fim de se tornarem seus sacerdotes. Eventualmente, Cibele recebeu os predicados de “Mãe de todos os deuses” e “amante de todas as vidas”.
A maioria das informações sobre seu culto descreve práticas religiosas vigentes durante o período romano posterior à Igreja cristã primitiva. Os detalhes anteriores a essa data são pouquíssimos e quase todo documento original é relativamente tardio, uma vez que o início de seu culto remete a mais ou menos 200 a.C., enquanto, por outro lado, as fontes primárias são datadas muito depois da última escritura do cânon neotestamentário.
De acordo com o mito, Cibele amava um jovem pastor chamado Átis. Por ter sido ele infiel à deusa, Cibele lança em Átis uma maldição, transformando-o num demente. Átis, conduzido pela loucura, castra-se e morre. Esse fato leva Cibele a cultivar profundo luto e a introduzir a morte no mundo natural. No entanto, a deusa restabelece Átis à vida, elevando-o a uma espécie de semideus, evento que, simultaneamente, devolve a vida ao mundo natural.
Outra narrativa semelhante nos conta que Cibele confia a Átis o cuidado de seu culto, sob a condição de ele não violar seu voto de castidade, mas o pastor esquece o juramento e desposa a ninfa Sangarida. Por conta disso, Cibele o puni, matando a rival. Átis fica profundamente magoado e, num acesso de delírio, mutila a si mesmo e planeja seu enforcamento, mas é interrompido por Cibele, que o transforma em um pinheiro (parágrafo do tradutor).
Atentando à primeira versão, as pressuposições dos intérpretes desse mito tendem a determinar a narrativa que descreve o que se segue após a morte de Átis. Muitos escritores recorrem, negligentemente, à “ressurreição de Átis”. Mas, seguramente, isso é um excesso. Não há, no mito, qualquer menção de algo que se assemelhe a uma ressurreição e que sugira que Cibele tenha preservado o corpo de Átis, tal qual este o possuía em sua existência humana. Em algumas versões do mito, Átis retorna à vida não na forma de homem, mas numa espécie de árvore eterna. Considerando que a idéia básica que está por baixo do mito era o ciclo da vegetação anual, qualquer semelhança com a ressurreição corporal de Cristo é cavalar.
A história nos conta que a encenação pública do mito de Átis se tornou um evento anual, no qual os adoradores acreditavam compartilhar de sua “imortalidade”. Assim, em cada primavera, os seguidores de Cibele lamentavam a morte do semideus por meio de atos de jejum e flagelação.
Somente durante as celebrações romanas posteriores ao século 1o depois de Cristo (após 300 d.C.), esses festivais de primavera trouxeram alguma coisa remotamente semelhante a algo que se possa considerar uma “ressurreição”. Nessas celebrações, um pinheiro, simbolizando Átis, era cortado e carregado pelos devotos, representando, ao mesmo tempo, seu cadáver e um santuário dedicado a Cibele. Depois, a árvore era enterrada, enquanto os iniciados se entregavam a um frenesi que os levava a se cortar com facas. Na noite seguinte, a árvore era desenterrada e a “ressurreição” de Átis, celebrada. Essa “ressurreição”, contudo, somente é registrada em literatura datada do século 4o depois de Cristo.
Outra questão que envolve esse mito é o taurobolium, “o sacrifício do touro”, rito mais conhecido do culto da “Grande Mãe”. Mas é importante assinalar que esse ritual não fazia parte do culto de Cibele em suas fases iniciais, integrando a religião apenas na metade do século o depois de Cristo.
Durante essa outra cerimônia, os iniciados ficavam em pé ou deitados em uma cova, enquanto um touro era sacrificado em uma plataforma acima deles. Os devotos, então, tomavam um banho de sangue morno do animal agonizante. Há quem alegue que o ritual do taurobolium tivesse sido uma fonte para o conceito cristão da purificação no sangue do cordeiro (Ap 7.14), ou aspersão no sangue de Jesus (1Pe 1.2). Também é defendido que o taurobolium tenha sido a fonte empregada pelo apóstolo Paulo para escrever o ensinamento que consta em Romanos 6.1-4, onde ele relaciona o batismo cristão à identificação do crente com a morte de Cristo e sua ressurreição.3
Contudo, nenhuma noção de morte e ressurreição fazia parte do taurobolium. A melhor evidência disponível exige que datemos o ritual, aproximadamente, cem anos depois que Paulo escreveu a epístola que endereçou aos romanos. Nenhum texto existente apóia a reivindicação de que o taurobolium era uma comemoração da morte e ressurreição de Átis antes do século 1o. O rito pagão não poderia ter sido, nem mesmo com probabilidade mínima, a fonte para o ensino paulino que consta em Romanos 6. Apenas perto do fim do século 4odepois de Cristo o ritual agrega a noção de renascimento.Vários estudiosos reconhecidos, inclusive, enxergam uma influência cristã no desenvolvimento desse rito, ficando claro, portanto, que o cristianismo poderia ter influenciado a construção do rito pagão e não o contrário.4 Além disso, como sabemos, o Novo Testamento ensina que o derramamento de sangue deveria ser interpretado no contexto em que se observava a Páscoa e os sacrifícios no templo judaico, à época do Antigo Testamento, período bastante antecedente.
O CULTO DE MITRA (DIVINDADE INDO-IRANIANA)
Tentativas de reconstruir as crenças e práticas do mitraísmo geraram desafios enormes, por causa da escassa informação que sobreviveu aos tempos. Sabemos que entre os elementos do culto de Mitra está a explicação dos fenômenos do mundo por meio de dois princípios máximos e opostos, um bom (descrito como luz) e o outro mau (descrito como trevas). Segundo a religião, os seres humanos tinham de escolher por qual lado lutariam, integrando-se ao conflito entre a luz e as trevas. Mitra chegou a ser considerado o mediador mais poderoso no auxílio aos humanos contra o ataque das forças demoníacas.5
A razão principal pela qual afirmamos que o mitraísmo não pode ter influenciado o cristianismo do século 1o é a cronologia: é completamente anacrônica! O florescimento do mitraísmo se deu após o fim do cânon do Novo Testamento, período em que já não podia ter influenciado qualquer elemento que nesse constasse.6 Sabemos que os escritos neotestamentários não podem ser datados em nenhum monumento que suceda ao período de 90-100 d.C. e, mesmo assim, isso exige que façamos algumas suposições bastante generosas. Dificuldades cronológicas, então, fazem da possibilidade de uma influência do mitraísmo no cristianismo primitivo algo extremamente improvável. Certamente, não há evidências críveis para tal influência.
PAGANISMO DE TERMINOLOGIA CRISTÃ
Os acadêmicos que difundem um cristianismo primitivo como produto de influências das religiões de mistério, freqüentemente, empregam terminologia cristã para descrever crenças e práticas pagãs, e então se maravilham diante da “analogia perfeita” que pensam ter proporcionado. Alguns deles vão longe no intento de “legitimar” a dependência cristã dos rituais pagãos e descrevem determinadas crenças de mistério subvertendo os fatos por meio de uma terminologia cristã. J. Godwin faz isso em seu livro, Mystery Religions in the Ancient World [Religiões de mistério no mundo antigo], onde descreve ocriobolium, uma versão econômica do taurobolium, modificação bastante comum à época vigente do culto, justificada pelo fato de que os touros eram animais caros e, por isso, preciosos, então, os iniciados o substituíam pelo cordeiro, cujo valor era menor. Godwin omite os fatos e afirma: “Assim, nocriobolium ocorria o batismo de sangue, ritual em que o iniciado era lavado com o sangue do cordeiro”.7
Os leitores mais desinformados poderiam ser aturdidos por essa semelhança notável com o cristianismo (V. Ap 7.14), mas um pouco de pesquisa é suficiente para desvendar a manipulação desonesta que visa depreciar a veracidade e originalidade dos preceitos cristãos.
Exageros e simplificações abundam nesse tipo de literatura. Os pesquisadores são ávidos em conjecturar semelhanças entre o batismo e a Ceia do Senhor, sacramentos análogos em certas religiões de mistério. Tentativas de encontrar afinidades entre a ressurreição de Cristo e as alegadas “ressurreições” das deidades de mistério somam quantias volumosas que renderiam muito conteúdo para comentários.
RITUAIS PAGÃOS E SACRAMENTOS CRISTÃOS
O fato de o cristianismo observar uma “refeição sagrada” (a Santa Ceia) e o ritual de banhar o corpo (o batismo) é indicado, pelas religiões de mistério, como sendo uma provável evidência de que tenha adquirido esses sacramentos de outros rituais pagãos similares. No entanto, os rituais, em si mesmos, não provam nada, pois é claro que tais cerimônias religiosas podem assumir um número limitado de formas. E essas formas, invariavelmente, podem se relacionar, de maneira natural, com os aspectos importantes ou comuns da vida cotidiana (como, por exemplo, o ato de comer e de se banhar). Então, a pergunta mais importante, neste caso, é sobre o significado das práticas pagãs.
O banho ritualístico que antecedeu o Novo Testamento tinha um significado diferente do batismo cristão. As refeições sagradas, realizadas pelas religiões de mistério gregas e pré-cristãs, não provam qualquer coisa, pois sua cronologia é totalmente errada. Tais cerimônias tinham desaparecido completamente na época de Jesus e de Paulo. As refeições sagradas observadas em anos posteriores, como as que ocorriam no mitraísmo, também são anacrônicas, uma vez que eram muito recentes para que pudessem exercer tamanha influência.
Ao contrário dos ritos de iniciação das religiões de mistério, o batismo cristão direciona seu olhar para uma realidade, uma pessoa histórica: Jesus Cristo. Os defensores dessas religiões acreditavam que os “sacramentos” em seus cultos tinham o poder de conceder ao indivíduo os benefícios da imortalidade de um modo mecânico ou mágico, sem que o adepto sofresse antes ou depois qualquer transformação moral ou espiritual relacionada ao ato. Certamente, essa não era a visão de Paulo sobre a salvação ou a observância dos sacramentos cristãos. Muito pelo contrário, o batismo cristão não é uma cerimônia mecânica ou mágica. Sua fonte de influência não advém nem do taurobolium8, que foi uma prática notadamente posterior ao século 1o depois de Cristo, nem dos banhos ritualísticos pagãos. A fonte do batismo cristão vem do Antigo Testamento, da prática judaica de batizar prosélitos, provável fonte para o exercício do batismo realizado por João Batista.
Entre todas as religiões de mistério, somente o mitraísmo observou um ritual que se assemelhou à Ceia do Senhor. Um pedaço de pão e uma xícara de água eram colocados perante os iniciados, enquanto o sacerdote de Mitra recitava algumas palavras cerimoniais. Mas, mesmo assim, a história tardia desse ritual impede as possibilidades de que tenha exercido qualquer influência no cristianismo do século 1o .
Enfim, as reivindicações de que a Ceia do Senhor teve sua origem nas refeições sagradas pagãs são exageros e fruto de estudos reducionistas, pois o suposto paralelismo é completamente falho.9 Qualquer argüição que tenha em vista os antecedentes históricos da Ceia do Senhor terá mais sentido se considerar a herança que os fundamentos judaicos legaram à fé cristã. A Ceia do Senhor remete a uma outra realidade, a uma pessoa histórica e ao que essa pessoa fez na história. A ocasião que levou Jesus a adotar Ceia foi o banquete de páscoa, observado entre os judeus. Não foram, absolutamente, as invenções ritualísticas pagãs.
“E, no primeiro dia da festa dos pães ázimos, chegaram os discípulos junto de Jesus, dizendo: Onde queres que façamos os preparativos para comeres a páscoa? E ele disse: Ide à cidade, a um certo homem, e dizei-lhe: O Mestre diz: O meu tempo está próximo; em tua casa celebrarei a páscoa com os meus discípulos. E os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara, e prepararam a páscoa. E, chegada a tarde, assentou-se à mesa com os doze [...] E, quando comiam, Jesus tomou o pão, e abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados. E digo-vos que, desde agora, não beberei deste fruto da vide, até aquele dia em que o beba de novo convosco no reino de meu Pai. E, tendo cantado o hino, saíram para o Monte das Oliveiras” (Mt 26.17-30).
A MORTE DOS DEUSES PAGÃOS E A MORTE DE JESUS
O melhor modo de avaliar a alegada dependência que o cristianismo deve aos mitos pagãos que pregavam a existência de deuses que “morreram” e “ressuscitaram” é examinando cuidadosamente os casos. A morte de Jesus difere da morte dos deuses pagãos em pelo menos seis pontos:
1) Nenhum dos denominados “deuses salvadores” morreu por outra pessoa. A noção do Filho de Deus, que morre no lugar das criaturas que ele próprio criou, não tem paralelos na mitologia pagã.10
“Mas Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8).
2) Apenas Jesus morreu por causa do pecado. Como observa Günter Wagner: “Nenhum dos deuses pagãos jamais teve a intenção de ajudar os homens em sua decadência. O tipo de morte que eles sofreram sempre era justificada de maneira bastante diferente”.11
“Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça” (Ef 1.7).
3) Jesus morreu de uma vez por todas, enquanto os deuses de mistério eram divindades relacionadas à vegetação e suas repetidas mortes e ressurreições descreviam e se conformavam ao ciclo anual da natureza.
“Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez por todas. E assim todo o sacerdote aparece cada dia, ministrando e oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar os pecados; mas este, havendo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, está assentado à destra de Deus, daqui em diante esperando até que os seus inimigos sejam postos por escabelo de seus pés. Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (Hb 10.10-14).
4) A morte de Jesus foi um evento real, enquanto a morte dos deuses de mistério somente consta em dramas míticos, sem vínculos históricos. Suas continuadas encenações celebram a recorrente morte e nascimento da natureza. O fato incontestável de que a Igreja primitiva acreditou que a proclamação da morte e ressurreição de Jesus tinha fundamento histórico, torna absurda qualquer tentativa de comparação que vise apresentar o relato bíblico como produto dos mitos pagãos.12
5) Diferentemente dos deuses de mistério, Jesus morreu voluntariamente. Nada semelhante a isso é mencionado, nem mesmo implicitamente, nas religiões de mistério.
“E andai em amor, como também Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Ef 5.2).
6) A morte de Jesus não foi uma derrota, mas um triunfo. Até mesmo quando Jesus estava sofrendo a dor e a humilhação da cruz, seu comportamento e mensagem eram o comportamento e a mensagem de um vencedor. Nisso também há um contraste nítido, já que, nas religiões de mistério, os seguidores pranteavam e lamentavam pelo destino terrível que acometia seus deuses. Diametralmente oposto a isso, o evangelho nos diz que Jesus venceu a morte e ressuscitou! 13
“E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória?” (1Co 15.54-55).
A RESSURREIÇÃO DOS DEUSES PAGÃOS E A RESSURREIÇÃO DE JESUS
Quais foram os deuses de mistério que, segundo os próprios relatos míticos, ressuscitaram? Certamente nenhum texto primitivo menciona a ressurreição de Átis. Nem é o caso de uma ressurreição de Osíris. Os estudiosos só podem pensar em uma “ressurreição” de Osíris, Átis ou Adonis no sentido mais amplo e subjetivo.14 Como vimos na primeira parte desta matéria, somente para citar um exemplo, diz o mito egípcio que Ísis reuniu os pedaços do corpo desmembrado de Osíris, que depois se tornou o deus dos mortos. Esse é um caso paupérrimo para ser comparado com a ressurreição de Jesus Cristo. De igual modo, nenhuma afirmação de que Mitra passou pela experiência da morte e da ressurreição pode ser sustentada, nem mesmo nos relatos mitraícos. Uma grande maré de opinião acadêmica procurou assinalar, com perspicácia, que o cristianismo primitivo derivou suas crenças de morte e ressurreição dos deuses pagãos do mundo helenístico, mas qualquer exame imparcial demonstra que tais reivindicações devem ser rejeitadas.15
O CULTO DE INICIAÇÃO PAGÃO E O RENASCIMENTO CRISTÃO
Os textos dos teólogos liberais estão repletos de generalizações que defendem que o cristianismo primitivo tomou emprestada sua noção de renascimento das religiões de mistério.16 Mas as evidências são explícitas quando apontam que nunca houve nenhuma doutrina pré-cristã que aludisse ao conceito de renascimento. O que há, na verdade, são pouquíssimas referências à noção de renascimento nos documentos que sobreviveram ao tempo, e até mesmo esses documentos ou são muito tardios ou muito ambíguos. Portanto, não fornecem nenhum auxílio que possa colaborar com as fontes neotestamentárias. A vindicação de que as religiões de mistério pré-cristãs consideravam seus rituais de iniciação como uma espécie de renascimento não usufrui de qualquer aprovação dos documentos antigos. O máximo que se observa são achados interpretados por eruditos de maneira altamente especulativa.
A maioria dos estudantes contemporâneos sustenta que o emprego do conceito de renascimento pelas religiões de mistério (e todos são posteriores ao ano 300 d.C.) difere tão significativamente de seu uso no Novo Testamento que qualquer possibilidade de ligação íntima está fora de cogitação. Na melhor das hipóteses, os estudantes estão dispostos a concordar que existe uma remota possibilidade de se conceber que alguns cristãos tomaram emprestada a metáfora e a reformularam, para que pudessem ajustar suas convicções teológicas, que eram bastante distintas do paganismo. Tanto é assim que, se a metáfora de renascimento fosse helenística, seu conteúdo, no cristianismo, seria único.17
SETE ARGUMENTOS CONTRA A INFLUÊNCIA DAS RELIGIÕES DE MISTÉRIO NO CRISTIANISMO
Concluiremos esta matéria com sete pontos que suplantam os esforços dos teólogos liberais em manipular essa suposta influência:
1) Os argumentos usados para “provar” a dependência cristã das religiões pagãs são, muitas vezes, baseados naquilo que a filosofia classifica como falácia lógica de causa falsa. Essa falácia ocorre sempre que alguém acredita que só porque duas coisas existem lado a lado uma delas deve ter causado a outra. Como deveríamos saber, a mera coincidência não prova conexão causal, nem a semelhança prova dependência.
2) Muitas das alegadas semelhanças entre o cristianismo e as religiões de mistério ou são grandemente exageradas ou são fabricadas. Os estudiosos, freqüentemente, descrevem os rituais pagãos em uma linguagem que eles mesmos tomaram emprestado do cristianismo. O uso descuidado dessa “linguagem” levou alguns deles a falar de uma “santa ceia” no mitraísmo ou de um “batismo” no culto de Ísis, quando estes próprios mitos nunca empregaram tal linguagem. A bem da verdade, é uma tolice indesculpável tomar a palavra “salvador”, com toda a sua conotação no Novo Testamento, e aplicá-la a Osíris ou a Átis, como se houvesse semelhança entre eles.
3) A cronologia que se esforça para emparelhar o cristianismo às religiões de mistério é toda errada. Quase todas as nossas fontes de informação sobre as religiões pagãs são tardias, isto é, são vigentes de uma época posterior ao século 1o depois de Cristo. Em algumas pesquisas, podem ser encontrados escritores que citam documentos escritos até 300 anos depois que o apóstolo Paulo produziu suas epístolas. Temos de rejeitar a suposição de que só porque uma religião teve certa crença ou prática no século 3o ou no 4o depois de Cristo, isso significa que teve a mesma crença ou prática no século 1o.
4) O apóstolo Paulo jamais teria, conscientemente, tomado emprestado os conceitos das religiões pagãs. Todas as informações que temos sobre Paulo tornam isso altamente improvável. O apóstolo sempre fez questão de afirmar sua rígida formação no judaísmo: “Se algum outro cuida que pode confiar na carne, ainda mais eu: circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; segundo a lei, fui fariseu” (Fl 3.4,5). Paulo advertiu os colossenses contra toda sorte de influência que pudesse conduzir o cristianismo ao sincretismo: “Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo” (Cl 2.8).
5) Diferentemente das religiões de mistério, o cristianismo primitivo tinha uma fé exclusivista. Como explica J. Machen: “Um homem poderia ser iniciado nos mistérios de Ísis ou Mitra sem que isso afetasse suas crenças anteriores; mas se esse mesmo homem fosse recebido pela Igreja cristã, de acordo com os escritos de Paulo, teria de abandonar todos os outros salvadores, a fim de servir somente Jesus Cristo [...] No sincretismo prevalecente do mundo greco-romano, a religião de Paulo e a religião de Israel estavam absolutamente sós”.18 Esse exclusivismo cristão deveria ser um ponto de partida para toda reflexão sobre as possíveis relações entre o cristianismo e os seus oponentes pagãos. Qualquer sugestão de sincretismo no Novo Testamento teria causado controvérsia imediata.
6) Outro ponto distinto entre o paganismo e o cristianismo é que os eventos do cristianismo aconteceram historicamente. O misticismo dos cultos de mistério, não. Seus mitos não passavam de histórias dramatizadas pelo iniciado a respeito daquilo que experimentava. Seus eventos não eram reais, como Paulo considerou a morte e a ressurreição de Cristo. Essa afirmação histórica do cristianismo não encontra paralelo em qualquer religião de mistério pagã.
7) Depois de tudo isso, poucos motivos de comparação podem permanecer em pé. Como asseverou Bruce Metzger: “Não se deve assumir, sem postura crítica, que as religiões de mistério influenciaram
o cristianismo, pois isso não só não era possível como também é mais provável que, em certos casos, a influência ocorreu na direção oposta”.19 Não deveríamos nos surpreender com o fato de que os líderes das religiões pagãs, que estavam sendo desafiadas pelo cristianismo, devessem fazer algo para se oporem a esse desafio? Haveria modo melhor de fazer isso do que oferecendo um substituto pagão? O paganismo tentou se opor ao cristianismo, imitando-o. E essa atitude pode ser vista de forma clara e evidente pelas medidas instituídas por Juliano, o apóstata, que foi o imperador romano de 361 a 363 d.C.
Fonte: Revista Defesa da Fé, Ano 10 – N° 82.
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